Janela

Com sorriso cinza e olhos vazios segui em frente por quase cinco passos, quando como num golpe final paraliso. O que faço da minha vida enquanto meus pés medem esse mundo? Como cão vadio que só conhece a gravidade pela saliva que no canto da boca escorre, fiquei a observar a vida passar.

As luzes da distante cidade me encantavam. Sempre me encantaram. Talvez estivesse em um céu estrelado. O vento batia em meu rosto quase petrificado tentando me sussurrar algo que ainda não estava pronto para ouvir. Algo que o mundo queira me dizer.
Do alto da janela podia ouvir os passos dos transeuntes. Me sentia sozinho. Mas feliz. Um casal de namorados a meia noite sentados num banco da praça iluminados pela prata da lua. Estavam sendo observados. Esbarradas rápidas, alguns solitários e algumas solitárias. Felizes ou não, estavam lá vivendo. Sentia o calor dos corpos que passavam sem noção alguma de que estavam sendo observados. A janela era um refúgio, fazia esquecer-me do aprisionamento, me sentia novamente como antes. Como muitos que vi lá na calçada poderia caminhar lado a lado de alguém, sorrindo ou talvez esbarrando em alguém.
Eu poderia ter caminhado sobre aquela calçada sem motivo algum apenas para observar a vida passar, as árvores no outro lado, os mosquitos que voavam próximos às lâmpadas, tropeçado em algum dos tijolos quebrados e então soltado um grito de raiva ou talvez enviado um sorriso falso de constrangimento. Poderia estar pensativo com uma das mãos arrastando-se nas grades negras da grande casa. Mas não fiz nada disso. Hoje podendo ouvir os passos. As vozes longínquas, os sussurros apaixonados. Observando invejosamente os gestos simples e constrangidos, gestos quentes indiscretos.

Eu não sou belo. Não te engano. Minhas asas são negras como a noite, ao invés de harpas trago foices. Mas nem por isso tenho a morte em meu sangue. Desejo sim a felicidade, e hoje sinto o que costumaria chamar de paixão. Uma chance ter a vida que quero, ao seu lado. Ainda que negras, minhas asas não fazem das montanhas barreiras. Ainda que rude, a foice ajudará a limpar o caminho até você. E junto à lua que hoje ilumina minha ambição, ilumina também a ti. E um dia, poderá iluminar a nós.

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